









moema bem-te-vi
moema bem-te-vi
miguel arcanjo terra
IBIJAÚ, O CANTO DA SOMBRA.
ROUXINOL, O CANTO DA LUZ.
IBIJAÚ. A SOMBRA DA NOITE
Mesmo nestes tempos de tanta falta de coragem, ande uma noite dessas pela Ibijaú.
Pé ante pé.
Quieto.
Só você.
Uma sombra silenciosa vai passar sobre sua cabeça. É a sombra da noite. O Ibijaú.
Esse pássaro, como tanta gente, tem hábitos noturnos, mas não é barulhento, como tanta gente.
O Ibijaú é um come-quieto da noite. Como pouca gente.
A rua Ibijaú, de dia, tem jeito do Ibijaú da noite. É uma sombra silenciosa de Moema. O desvio do desvario.
Mesmo com grandes hotéis, frente à frente, e prédios de escritórios, o silêncio da Ibijaú está nas sombras do grande pé de Pitanga ou na lenha empilhada em pequenos quintais abandonados.
Uma pilha de lenha na escuridão lembra a solidão primitiva dos homens, antes que Hera, esposa de Zeus, expulsasse do Olimpo o próprio filho Hefesto, só porque mancava de uma perna.
Hefesto, refugiado nos abismos da Terra, aprendeu lá o ofício de ferreiro. Com sua forja, fez fogo com os raios de Zeus, seu pai. E também fez Pandora, a primeira mulher mortal, com vida dada pelos deuses.
Tanta era a feiúra de seu filho, que Zeus, compadecido, lhe entregou Afrodite como esposa. E aí, sim, o fogo de Hefesto pegou de uma vez e chegou aos fornos das pizzarias.
Quem trabalha ou mora na Ibijaú, uma rua deliciosamente fora de um mundo cibernético e escalafobético, pode sentir a plena alegria de ser sem crachá.
Todos perdemos nossa essência com o contra-senso absurdo de um crachá, que nos dá uma identidade virtual e tira a real. Não existe vida em Marte. E também não existe atrás de um crachá.
Do Largo da Matriz ao Largo da Matrix, o crachá veio aos poucos implantando a morte.Penso, logo existo. É coisa morta.
Ser ou não ser, eis a questão. É coisa morta.
Amai ao próximo como a si mesmo. É coisa morta.
É preciso a coragem de desobedecer, de dizer não ao poder. É coisa morta.
É melhor ser muito do que ter muito. É coisa morta.
O homem não foi criado para ser coisa. É coisa morta.
A ternura é o mais belo sentimento humano. É coisa morta.
O homem reduzido a um cartão magnético deixa de ser original e criativo. É coisa morta.
A esperança é a última que morre. É coisa morta.
É impossível existir vida humana atrás de um crachá.
Mas, na Ibijaú, é possível dispensar crachás e cartões, todos esses cartões com que se chega à inadimplência, e buscar mansamente na vendinha uma lata de sardinha.
A grande arte de abrir uma lata de sardinha é a mais deliciosa provocação às futilidades de uma sociedade inconsistente. É possível na Ibijaú, nas linguiças penduradas do açougue, pendurar também o olhar, como um cão vadio e feliz. Basta um quilo de linguiça para o homem se conhecer a si mesmo, dentro de si mesmo e com a plena consciência de si mesmo dentro do mundo. Contemplar um quilo de linguiça resolve certas crises existenciais provocadas pela vaidade humana. Goethe concordaria, ele que deve ter sido um bom apreciador de linguiça alemã.
E na locadora de livros alugar uns versos ou ter uma prosa de graça.
E nas locadoras de vídeo sentir que pelo menos num mundo de duas dimensões o controle é nosso.
Na Ibijaú, cortar o cabelo ou fazer ginástica é coisa sem frescura e se tem é só uma frescura de passagem, da sombra ou da aragem. Naquela pracinha com bancos de tijolos aparentes tem mais sombra que gente.
E tem um recado no ar para construtores, incorporadores e outros mais ambiciosos:
Não pensem que o caminho para o céu é no sentido vertical. O caminho para o céu é no sentido horizontal. Ou como cantaria Cora Coralina:
Eu sou estas casas
Encostadas
Cochichando uma com as outras
Eu sou a ramada
Dessas árvores
Sem nome e sem valia
Sem flores e sem frutos
De que gostam a gente cansada e os pássaros vadios...
Eu sou aquele teu velho muro
Verde de avencas
Onde se debruça
Um antigo jasmineiro cheiroso
O ROUXINOL QUE
NÃO CANTA AQUI
Nenhum menino passarinho ouviu o Rouxinol em Moema.
E se por acaso ouviu, foi canto da saudade.
--- Lembrança canta dentro da gente igual Rouxinol, falou certa tarde, com arrastado sotaque e voz trêmula, o mais velho tintureiro de Moema. Ele veio do Japão.
O Rouxinol é passarinho de meninos da Ásia e da Europa. Eles chegaram há tempos por aqui. E se havia na viagem um passarinho na gaiola, fez um buraquinho e voou, voou, voou.
A cavalo no campo e, de repente, quieto, o Rouxinol. Visões de Matsuo Bashô, no seu diário de viagem, com os mais sutis versos do Haiku.
Nosso Rouxinol é o Corrupião e não tem placa de rua em Moema.
O Corrupião, alegre assobiador, é brasileiro nato, e canta o canto de qualquer outro passarinho. E é assim que qualquer brasileiro se vira quando lhe falta o dom. Ele pega um dom emprestado e entra no tom.E pode ser o tom de qualquer prosa, seja em cadeiras na calçada da padaria in ou nos balcões da padaria out, com cheiro de pão na chapa, à moda antiga.
Na Rouxinol, o tom muda de número em número.
Ora, empanadas argentinas.
Ora, uma casa de sopa, creme e geléia.
Ora, um café franqueado.
Atenção, cuidado, que vem no meio da rua um puxador de carroça na contramão, atrapalhando o tráfego.
Ah, essa porção de brasileiros que anda na contramão da Rouxinol, qual é o poder abaixo de Deus que pode mudar o seu destino?
Gente também é bicho, dá vontade de dizer para o jovem que defende o Mico Leão Dourado e busca a vida selvagem numa loja de roupas estilo jump. Ou para aquela mulher que sai com seu cachorro perfumado de um pet-shop.
Perfumes, cosméticos, moda, a vida é feminina.
E o puxador de carroça passa.
Lojas de pedras, estátuas e fontes artificiais para os jardins.
E o puxador de carroça passa.
Sobrados geminados que viraram lojas de decoração, clinicas veterinárias, clínicas dentárias, butiques, modos chiques.
E o puxador de carroça passa.
Um prédio de apartamentos imenso como o Edifício Copan, talvez sem tantas histórias nem poesia.
E o puxador de carroça passa.
A produtora de filmes e vídeos, o conjunto de escritórios que não reflete luz porque lhe falta brancura, a mercearia cheia de frescura.
E o puxador de carroça passa.
O açougue da esquina.
A carne é vermelha.
E o puxador de carroça pára.
A carne é fraca.
Fica com os olhos vidrados num belo pedaço. Ele não é de ferro nem de aço.
Escorre saliva dos cantos da boca.
A fome é molhada.
A sede é que é seca. Ele também é de uma secura que só Deus segura.
Então, vai embora, mas antes cospe a saliva na porta.
Ninguém se importa.
É bom lembrar que água na boca que vem com a fome, às vezes é o sinal de quem vai morder o mundo daqui a pouco como um cachorro louco.

