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O CANTO DA COTOVIA VEM DO VELHO MUNDO.

O DO SABIÁ É DO NOVO.

1. COTOVIA DE SHERAZADE







A Cotovia é um pássaro assim de uns quinze centímetros de comprimento que tem uma das asas no Velho Mundo, outra no Novo e voa nos dois.
Seu canto vem desde Sherazade e já faz mais de mil e uma noites.
Lembra Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Marília e Dirceu.
Rua Cotovia. Figueiras majestosas recriam fabulosas sombras, iguais às que abrigaram Rômulo e Remo e a Loba que os amamentava.
Também está lá na rua a Mangueira da mesma família daquela que reverenciou com frutos a passagem de Buda.
Nesse grande círculo onde a vida gira, até o abacateiro da Rua Cotovia caberia, mas o abacate nunca teve lugar em nenhuma história, nem do Patinho Feio.
Agora, umas folhas de limão é bom pedir naquela casa cor de rosa, para amassá-las entre os dedos e pegar um pouco do aroma que rondava os frangos que as mães de domingo levavam à mesa depois da missa.
O famoso frango com polenta da Cotovia deve ter vindo de uma dessas mesas desarrumadas pelo vento.
E o vento passa, brincaria o locutor esportivo Fiori Gigliotti.
Hoje, o vento que passa carrega saquinhos plásticos de lixo, largados, vazios, a voarem em redemoinhos de empoeirada tristeza.
Os saquinhos voam múltiplos como os pombos em direção da Avenida Ibirapuera e deixam no ar esta questão: os homens um dia serão tantos como os pombos e saquinhos de lixo e morreremos todos espremidos à porta de um supermercado?
O gerente da loja de materiais para construção e embalagens acredita que não.
O dono da lavanderia só teme faltar sabão em pó.
O vendedor de chope em barril não vê nenhum perigo, porque os bêbados sempre sobrevivem e são os últimos a deixar o recinto.
Talvez o negócio perigue para a loja de inverno de Campos do Jordão. Vai ser um sufoco.
É bom lembrar que a Cotovia é uma rua gostosa para divagar, devagar.
As vitrines das butiques alimentam o sonho que todas as mulheres têm de serem mais bonitas do que a próxima mulher que encontrarem.
Do buffet para a academia de ginástica, da academia para o buffet --- é só atravessar a rua --- fica bem evidente que é muito pequena a distância entre o prazer e a dor. Uma atração mútua e eterna. Os portugueses, além do Brasil, também descobriram este grande negócio: perto de uma academia é o melhor lugar de uma padaria, porque o pão compensa a dor.
Parece divagação de japonês.
É. De um nissei.
Mas, ele já estava devagar, depois do quarto saquê no sushi-bar.



SABIÁ DE APOLO




Apolo deixou nas laranjeiras uma pequena porção das delícias do Olimpo.
E deixou no canto do Sabiá um pouco da música dos deuses.
Em quintais singelos, consagrou essa união.
Sabiá Laranjeira.
Quem ouve seu canto em Moema é tocado pelo Deus Grego da Harmonia.
E se às vezes o canto dói ou incomoda é porque alguma coisa está fora do Tom Jobim.
Na harmonia do Tom Jobim, o Sol de Apolo é o mesmo que o Sabiá consagra com seu canto à beleza e à força de um amanhecer.
Ah, se as pessoas aprendessem a amanhecer. Mas, elas apenas entardecem.
O canto do Sabiá --- mesmo os que cantam fora de hora, iludidos pela claridade artificial de Moema --- é um elo para quem se perdeu dos deuses e dos heróis que ainda freqüentam o porão de nosso espírito, onde cortaram a luz.
Aquele que perguntar Quem Sou Eu no mesmo instante em que o Sabiá cantar, talvez não encontre a resposta, mas vai resvalar na parte obscura de nossa eternidade --- e vai se arrepiar.
É a mesma eternidade que pousa cambiante com o canto do Sabiá em tantas nuanças daquele jardim de rosas da casa 184 (meu Deus, tomara que ela ainda esteja lá).
Ouça o Sabiá e questione: Quem Sou Eu?
Questione em seguida que importância pode ter na eternidade a falta de tempo para uma depilação a laser.
E que importância tem quebrar uma taça de cristal comprada há pouco na loja de tantos brilhos efêmeros?
Não chore pelo vinho derramado.
Quando o Sabiá canta, acredite no milagre da multiplicação. O Sol de Apolo garante. Mesmo que haja sombras nos interiores de tantas igrejas e de tantas almas tão diferentes uma das outras e, no entanto, tão iguais. Mesmo que unhas de gato tornem intransponível o muro de um quarteirão inteiro e vozes adolescentes de colegiais tragam sonhos que tantos sonharam na hora do recreio.
Os ecos do canto do Sabiá preenchem o vazio das janelas de antigos sobrados que lembram laranja madura colhida no pé.E lembram pés de camomila e hortelã dos quintais, quando se fazia chá até para dor de cotovelo e nenhum dos vizinhos sabia explicar nem ouvia falar de tratamentos estranhos que vieram depois.
O que é shiatsu?
O que é catsu?
Os velhinhos da Sabiá só sabem a resposta da segunda pergunta. Justo eles que sabiam tantas coisas e nos sinais de fumaça do domingo passavam a mensagem de que depois do churrasco iriam todos assistir numa pequena tela em preto e branco o clássico de futebol no Pacaembu, via TV Record.
Diante de imensas telas planas e em cores dos restaurantes da Sabiá, ainda se vê alguns desses velhinhos a cochilar na hora do jogo. É impossível ficar desperto com lances sempre iguais. É insuportável o sono diante de narradores que apenas nos vazios entre uma jogada e outra entram no ar para anunciar solenemente o número de faltas de cada equipe, o número de cartões vermelhos, o número de impedimentos, os números da tabela, os números dos jogos dos últimos 10 anos, o número 0800 do patrocinador.
Quem conheceu os narradores poéticos do futebol, sempre acaba dormindo com os aritméticos.
Ah, mas não se incomode com essas mudanças.
O Sabiá é o de sempre, mesmo no crepúsculo da partida.



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